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Um Herói Moderno




A imagem guardada na memória é de Roberto Burle Marx no terraço de sua casa, em pé, frente a uma tela, completamente entregue ao ato de pintar. Olhar em volta e ver um de seus mais belos jardins, plantas instigantes, associações pictóricas. Ouvir sua voz de barítono cantando Schubert. Este momento roubado do mergulho abissal do artista revelou ali um gênio solar, um homem por inteiro, transgressor na liberdade de criar. Ele dizia que “a planta é viva enquanto se altera. Ela goza da propriedade de ser instável”. Roberto buscava travessias. Estávamos diante de um herói moderno. O pintor, paisagista, designer, cenógrafo, colecionador joalheiro e ambientalista nos deixou com sua obra uma das expressões completas do século 20. A partir dos programas delineados pelo Modernismo, mas com uma perspectiva própria, original e periférica, ele mostrou-se um homem comprometido com o espirito e a técnica do seu tempo, envolvido em projetos e intervenções que visavam a organizar e transformar o ambiente, harmonizando homem e natureza.

Sua rigorosa formação nas disciplinas do desenho e da pintura se iniciou na escola Degner Klemm, aos 19 anos, quando viveu em Berlim. Ali teve contato com a pintura de Picasso, Matisse e Klee. E foi sob o impacto de uma exposição de Van Gogh que decidiu ser pintor: “Foi tão impressionante que ele fez a escolha por mim”. Ao mesmo tempo, nas estufas do Jardim Botânico de Dahlen, se encanta com a exuberante flora brasileira. A sincronia destas descobertas permeou sua vida e se alternou como formas de expressão de sua arte: “Não quero fazer pintura que seja um jardim. Se faço jardim, não quero fazer pintura”. No entanto, a pintura era para ele um modo de pensar e planejar seu trabalho. As formalizações articuladas na pintura desdobravam-se por sua obra.

Roberto nos conta que fazer jardim, no início de sua vida profissional, foi uma sedimentação das circunstâncias, na medida que utiliza a natureza como como matéria para sua composição plástica, de acordo com o sentimento estético de sua época. Foi o modo que encontrou para organizar e compor seu desenho e a pintura, utilizando materiais menos convencionais.

Na escola de Belas Artes, então dirigida por Lucio Costa, onde ingressou em sua volta ao Rio de Janeiro, tem como professor o pintor expressionista Leo Putz. Alguns anos depois, trabalhou como assistente de Portinari nos murais do Ministério da Educação. São desta época seus belíssimos trabalhos realistas, de vasos de flores e figuras humanas.

A partir dos anos 50, a abstração começou a surgir em suas telas, ou como prefere chamar Clarival Valladares – crítico de sua obra, que o acompanhou ao longo de sua vida, de arquetipia biomórfica -, com “com uma motivação na estrutura íntima dos elementos visados in natura. Desenho e pintura antimiméticos, apesar de originados da textura viva”. Seu intenso desejo de criar a volúpia de sua expressão artística imprimem a partir de então um ritmo intenso ao seu trabalho, pulsando matéria viva, nas formas de consciência. Alternava os suportes, ora pintura, ora desenho, gravuras, tapeçarias, com a dramaticidade do preto e branco, e a cor, estruturas de linhas alinhadas, aspecto de luz, estrutura de tabuleiros espirais.

Lucio Costa, fazendo analogia ao Roberto músico, pintor, fala de suas pinturas como “espaço e volumes organizados, em moduladas cadências ou se contrapõem e entrechocam com sincopados e heroicos confrontos”. Joaquim Cardozo homenageia seus desenhos em um poema: “O interior da matéria aflui, opera. Aos olhos apresenta múltiplas visagens. As linhas aparecem e se desfazem. Há súbitos polígonos que variam rapidamente de cor. Há quadriláteros de tinta rude entre feixes de traços longos, irradiantes, em meio do branco puro, das tintas neutras, dos pretos profundos”. Roberto Burle Marx trabalha incessantemente até a sua morte, nos deixando uma extensa obra com enorme significância e a sensação mágica de termos tido o privilégio de assistir e usufruir o trabalho criador de um gênio singular.





texto Isabel Duprat






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