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A Floresta do Imperador



D. Pedro II tinha hábitos estranhos. Falava numa máquina esquisita chamada telefone, estudava astronomia e botânica e colecionava fotografias, uma novidade recém-inventada. Mas sua maior excentricidade talvez tenha sido a reconstrução da floresta da Tijuca. Uma loucura épica que resultou no que é hoje a maior reserva ecológica urbana do mundo.


A cidade do Rio de Janeiro hoje, comemora o privilégio de envolver a maior floresta urbana do mundo, que esconde, mimetizada em mata virgem, o segredo de ter sido toda feita pelo homem. A floresta Taunay celebrizou em textos de 1885, para incredulidade de nossas mentes computadorizadas e imediatistas, não é a mesma floresta que encantou


Darwin em 1832. Viajar pela história dessa floresta é mergulhar numa aventura épica e se deparar com um arrojado e pioneiro projeto de reflorestamento, realizado ao longo de 30 anos, possível graças à personalidade visionária e empreendedora de D. Pedro II. Personagem principal da nossa história, nosso imperador, assume a ousadia de devolver a floresta ao maciço da Tijuca. Tal qual nos descreve Rubem Fonseca em o Selvagem da Ópera, nestes anos, imperador era uma figura forte; “com postura napoleônica, algo gordo, olhar calculista, boca sensual, cabelos lisos, penteados para o lado, bigode ralo e barbas escuras, que não chegavam a cobrir todo o rosto”. Tinha como passatempo estudar astronomia e botânica, e tão logo a fotografia foi criada em 1839, mergulhou no hábito excêntrico de colecioná-las, deixando um importante acervo documental de 25 mil fotos de diversas partes do mundo, inclusive do Brasil.

Amigo de Vitor Hugo, com quem se correspondia, em suas viagens à Europa mantinha encontros com personalidades famosas, como Pasteur, Máxime du Camp – com quem recordava Flaubert -, Gladstone, ex-primeiro ministro inglês, conversava com Nietzsche sobre Wagner, e na Itália, trocava ideias com Cesari Cantù, autor de Sttoria Universale. Cultivando o mecenato, patrocinou a viagem de Carlos Gomes à Itália. Ele foi também árbitro de importantes questões internacionais, como a do Alabama, entre os Estados Unidos e a Inglaterra. Falando oito idiomas conheceu a Palestina e o Egito, onde adquiriu a raríssima múmia adolescente que hoje repousa no Museu da Quinta da Boa Vista. Foi o primeiro chefe de estado a comprar um telefone quando todos achavam muito estranha esta invenção de Graham Bell. É de sua época, a instalação do primeiro cabo submarino de telégrafo na América, e nossa rede ferroviária se transformou na segunda do mundo em sua gestão. O desafio da empreitada de fazer uma floresta é parte dessa vida antenada, captando os sinais de modernidade do seu tempo. No início do século passado, os altos da Tijuca atraíam nobres europeus que buscavam uma fuga do calor tropical de 40° C no clima ameno do maciço. Tinham ali uma distância segura da insalubridade colonial, cercando-se da exuberante Mata Atlântica.

A “Sintra Portuguesa” como era chamada, abrigava em suas terras Nicolay Taunay – que se fixou junto à cascatinha que levou seu nome -, a Baronesa de Roham, o conde Gestas e o conde de Secy Montbéliard, bonapartistas expatriados. Vestindo suas quentes casacas vermelhas, eles passeavam, praticavam equitação e caçavam à moda europeia. As mulheres desfilavam seus chapéus, sombrinhas e longos vestidos bufantes, e todos faziam dinheiro com o plantio do café Bourbon. Assim se iniciou na Tijuca o ciclo do café brasileiro. As excelentes condições de clima e solo possibilitavam que a colheita fosse feita três vezes ao ano, transformando rapidamente a floresta em área devastada para o plantio de café. A lavoura rudimentar e predatória aumentava os limites da destruição, sempre à procura dos solos ricos que alimentavam a floresta. Os vales dos rios Cachoeira e Maracanã foram logo ocupados e o abastecimento de água da cidade começou a dar sinais de agonia. A esta altura, a Tijuca já abrigava em suas propriedades a elite da sociedade imperial, que indo se juntar aos primeiros nobres aventureiros davam ares sofisticados aos “Altos”. Em 1843 uma praga condenou os cafezais do maciço; foi o sinal de alerta para que esta mesma elite criasse um projeto de reciclagem desta área devastada. Iniciou-se um processo de desapropriação de terras junto aos mananciais para se viabilizar o projeto. A figura fundamental na decisão do governo de recuperar a vegetação do maciço foi Luís Pedreira do Couto Ferraz, o visconde do Bom Retiro; conselheiro e amigo de D. Pedro II. Foi o grande idealizador e incentivador do programa de reflorestamento. Morador dos Altos, ele acompanhou a devastação no seu “Sitio da Solidão”, cuja sede mais tarde foi ocupada pela Sociedade Hípica. Paralelamente a este projeto, Ferraz participou da concepção do plano de facilitar o acesso a esses maciços através de carros sobre trilhos, que seriam os primeiros da América Latina. Em Dezembro de 1861, o ministro da Agricultura, Comércio e Vias Públicas criou uma portaria fixando “Instruções provisórias para o plantio e a conservação das florestas das Paineiras e da Tijuca” e nomeou o major Manuel Gomes Archer para administrar a última.

Archer não era major de verdade, seu título teria vindo da Guarda Municipal. Mantinha sua Fazenda Independência no maciço da Pedra Branca, como uma fazenda modelo, e este deve ter sido o motivo do convite que recebeu para ser o gerenciador de todo o reflorestamento. Durante 11 anos à frente da administração da floresta, ele plantou 62 mil mudas, em média 5,6 mil por ano. Conforme recomendado nas “Instruções Provisórias”, utilizou espécies nativas vindas da floresta das Paineiras e de sua fazenda, entre elas: cedro, canela, peroba, jacarandá, pau-ferro e jequitibás. De outros pontos do Brasil recebeu aroeiras, mangabas, imbus e camarus. Experimentou ainda o eucalipto trazido por Bom Retido da Austrália, à beira das estradas. O tempo se encarregaria de dar vida própria a estas árvores, transformando-as em florestas, fazendo pousar sobre os seus galhos orquídeas e bromélias, e chamando sob sua sombra pássaros e esquilos. O plantio das mudas se concentrava nos meses de inverno, provavelmente pelo seu desgaste que as mesmas sofreriam no verão, e pela dificuldade de se trabalhar sob o sol inclemente nesta época do ano. O terreno era inicialmente preparado, erradicando os antigos cafezais e a vegetação invasora. As covas, para receberem as mudas, eram abertas com até dois metros de profundidade. A plantação era feita em linhas retas paralelas entre elas, obedecendo as curvas de nível para evitar a erosão. As mudas eram constantemente mantidas limpas de pragas, e as mudas mortas, repostas. Fazia-se bem também um constante trabalho de conservação dos mananciais e manutenção dos caminhos.

Ao contrário do que muita gente supõe, este trabalho não foi possível somente graças à existência de escravos. Havia, sim, alguns “Escravos da Nação”, como eram chamados os negros apreendidos em operações irregulares de tráfico, já proibido em 1850, que faziam parte do folclore da floresta. Archer contava com 17 trabalhadores assalariados em 1865, 19 em 1870 e 22 em 1872. Em 1879, contava com 33 trabalhadores. Recebiam 1,5 mil réis por dia sob a orientação de um feitor, com um salário de 2 mil réis. Muitos eram negros, ex-escravos que haviam plantado e colhido café no maciço. De qualquer forma, o contingente de empregados que fizeram a floresta é bem pequeno, e se acrescentarmos a isso, as precárias condições da época, é quase um milagre a viabilização desse projeto. Trabalho ingrato esse, de se plantar mudas com jeito de vareta e cara de nada, em encostas íngremes cor de terra, e cavar grandes buracos para renovar o solo pobre. Carregavam balaios com as pequenas árvores sabe-se lá como, em lombo animal ou no próprio ombro, que virou lombo tiranizado pelo sol. Acordavam no morro, viviam no morro e escureciam no morro. Como formigas persistentes, faziam um serviço ao qual dedicaram bons anos de suas vidas. O povo da cidade não entendia nada. Lá de baixo, só se via morro depenado. Deviam estranhar aquela gente que tanto cavoucava lá em cima. Num pacto de silencio, estavam preparando uma surpresa: plantavam para futuras gerações...

Em 1874, o major Archer foi transferido para a Quinta Imperial de Petrópolis, para realizar um trabalho semelhante. Gastão Luís Henrique de Scragnolle foi então nomeado para continuar os trabalhos. Ele era conhecedor há muito tempo da Cascatinha, que frequentava por ser cunhado de Félix Emile Taunay. Familiarizado com a Tijuca, para lá se mudou, na casa onde hoje é o Restaurante dos Esquilos. Nesse tempo, o plantio das árvores já estava bastante adiantado e o Barão se empenhou em transformar a floresta em parque público, contando com a ajuda do paisagista francês Glaziou, que embora trouxesse para cá o gosto inglês de fazer jardim, soube muito bem adaptá-lo à nossa vegetação. Foi a primeira vez, que aqui se fez um “jardim tropical”.

Com o fim do império, Luís Pedreira de Magalhães Castro, sobrinho de Bom Retiro e amigo de Deodoro, assume a floresta, dando continuidade aos melhoramentos do parque. Esta foi talvez a última etapa da reconstrução. Durante quase meio século, inebriados pelos ventos do progresso, os governantes foram deixando de lado as coisas da terra, deslumbrados com os primeiros carros que chegavam ao Rio. Foi em 1943, que Raimundo Castro Maya foi chamado pelo Prefeito Henrique Dodsworth para recuperar a floresta, agora em total estado de abandono. Industrial bem sucedido, filho de diplomatas, era amante da cidade do Rio de Janeiro e das coisas da natureza. Administrou a floresta como um bem querido, sem remuneração, pelo prazer de ver renascer o parque do fim do século. Dois anos depois de iniciados os trabalhos de recuperação de caminhos e monumentos, acrescentando novos melhoramentos que, se preciso, contavam com dinheiro de seu próprio bolso, a floresta já fazia parte do lazer do carioca nos fins-de-semana. Nos anos seguintes aos trabalhos de Castro Maya, o parque da Tijuca voltou a seu antigo estado de abandono, delatando a todos que, embora seja “correto” hoje se interessar por ecologia e apreciar a natureza, pouco se tem feito por ela. A floresta está em estado de alerta, uma mostra de que em assuntos de preservação e conservação temos muito a aprender com os heróis desta história: os fazedores de florestas.



Corcovado 1886,

Foto de Marc Ferrez

Arquivo Instituto Moreira Salles








Artigo de Isabel Duprat

publicado pela Revista Casa Vogue ano 19 n 3 1995




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