Ramalhete
Em um grão de areia veja o mundo. E em cada flor do campo, o paraíso.
William Blake, in Presages d’innocence,1789
Gosto de ter sempre flores perto de mim. São como ondas de luz colorida e sinto um enorme contentamento ao olhar para elas. As flores estão na mesa de trabalho, na entrada da casa, na sala, na cozinha, na cabana da praia, no campo, no quarto do hotel, onde eu estiver. É uma forma de me aconchegar e de me sentir bem. Estar próxima das flores daquele lugar me dá uma sensação de intimidade com a terra onde pisamos pela primeira vez, ou de uma agradável cumplicidade na rotina de lugares para onde sempre voltamos.
Minha mãe tinha uma grande paixão por flores e plantas e esta foi minha primeira conexão com este universo fascinante. Quando pequena, por vezes íamos a uma pequena floricultura próxima ao cemitério São Paulo onde eventualmente se encontrava ervilha de cheiro, uma flor perfumada de pétalas de seda, rosas e lilases, que depois comecei a semear junto ao muro de casa. Em ocasiões especiais íamos juntas a uma chácara de chão de terra úmida e escura numa travessa da avenida Santo Amaro, onde hoje se esparramam os edifícios da Vila Olímpia, comprar flores que se apresentavam nos canteiros semeados por uma senhora, que as cortava na hora e as embrulhava em um jornal. Eram esporinhas, mosquitinhos, rosas, lupinos perfumados, o que tinha na estação. Na volta para casa o assunto era escolher o vaso que melhor receberia a colheita. E eu então tinha a deliciosa missão de arranjá-las para a festa.
Lembrei-me destes momentos, quando percorrendo as estradas nas proximidades de Vila Angostura, ao norte da Patagônia, desfrutava da profusão de lupinos de todas as cores esparramando-senas margens em tons de rosa, roxo e azul. Apesar de vir a saber que são invasoras naquela região, não conseguia deixar de admirar a explosão de cores. O nosso quarto do hotel, à beira do rio Correntoso, verde transparente, foi enfeitado durante a nossa estadia, com um arranjo de flores secas que escolhemos num galpão à beira do lago Nauel Huapi. Eram naturalmente coloridas e nos inundavam de alegria.
A violeta africana era uma novidade às voltas dos meus 10 anos de idade, e trocar folhas que se transformavam em mudas das diferentes espécies com a sister Consuelo, no colégio Pio XII onde estudava, fazia-me sentir uma naturalista, seja qual nome se daria a esta atividade àquela época. Quando conseguíamos uma espécie com flores dobradas, ou de duas cores numa só, era uma grande conquista.
Na minha chácara de plantas, muitos anos mais tarde, no início dos anos oitenta, recém-formada em arquitetura, na companhia de minha mãe por um tempo bem curtido, ainda convivíamos com a dificuldade de encontrar flores. O Ceasa era nossa fonte, mas era uma verdadeira batalha conseguir uma bonita caixa de hortênsias, uma bela poinsétia no Natal. Cyclamen era uma raridade e boas prímulas, gloxínias e orquídeas não eram presas fáceis. Mas era uma aventura instigante criar belos arranjos com as flores que conseguíamos, plantá-las e embalá-las em cestas de bambu de todos os tamanhos que encomendávamos na cidade de Martim Francisco a cesteiros que confeccionavam balaios para a colheita de tomate. Mesclávamos hortênsias com avencas, chuvas de ouro com rendas portuguesas, embrulhávamos em papéis de seda coloridos das cores das flores, fitas de cetim do mesmo tom, e entregávamos os belos presentes, por vezes eu mesma, meu pai ou com ajuda do meu irmão, estudante de medicina àquela época. As cestas de flores eram um grande sucesso e a moda dos papéis coloridos se espalhou pela cidade. Eram poucas floriculturas por aqui, poucas flores, um território novo a ser percorrido.
Tive por um tempo um lugar muito especial, que ganhei de presente do meu marido quando ele morava no interior de São Paulo. Que brincadeira mais adorável: um pedaço de terra para receber o que eu quisesse plantar. Os finais de semana se passavam com enxada na mão, plantando de tudo e misturado, com direito a ter todas as flores que eu desejasse, esperar florescer e colher para fazer o vaso que naqueles preciosos dois dias do fim de semana iria enfeitar nosso terraço. Puro fascínio e diversão.
Faço ramalhetes como pequenos jardins. Cada flor, cada galho, folha, cor, é colocado em harmonia, elementos sempre únicos e efêmeros.
Nos jardins que projeto gosto de plantar arbustos e folhagens que dão flores para que sejam festejadas e colhidas.
É fascinante observar como cada pintor pinta suas naturezas mortas floridas. Matisse dizia que, quando buscava flores para pintá-las, ia colhendo no jardim, colocando na curva do braço, uma após outra ao acaso. Depois, quando as arranjava em um vaso a sua maneira em seu atelier, se decepcionava. O buquê havia perdido o encanto ao ser substituído por um arranjo engessado. Permito-me discordar dele em razão das belas pinturas que fez tendo estas flores como modelos vivos. Além do fato de que em todo o processo de plantar, ou escolher as nativas no campo, colher a flor, escolher o vaso do tamanho, cor e forma, transparente ou opaco, arranjá-las e colocar no lugar para onde foi pensado estar, vivo um cerimonial que me dá enorme prazer, em que aprecio cada momento com seu encanto particular.
No caminho da cabana que tínhamos na Bahia, fazia parte da celebração da chegada parar na estrada de areia e colher algumas flores muito lindas e valentes que se ofereciam nas entranhas do solo duro e seco no topo das falésias. Ao chegar, após tomar a benção da água de coco, já com o pé na areia, começava o preparo do vaso, com a trilha sonora da água do mar lambendo os corais ao fundo. Com o tempo, Glorinha, adorável mulher que cuidava da nossa casa, nos surpreendia com arranjos que fazia para nos receber, misturando as nativas com hibiscos coloridos, dando sinais de que estava pegando gosto por este fazer.
Nestes últimos anos, no nosso campo longe daqui, experimento as instigantes diferenças pontuadas das estações repetindo a colheita à beira da estrada das flores de inúmeros amarelos, miúdas e nem tanto, brancos e azuis, capins com inflorescências e formas em todos os tons, dos beges aos bordôs, sempre deixando muitas no pé para que suas sementes se espalhem, e que deliciosa surpresa encontrá-las no mesmo lugar no ano seguinte. Grande prazer me dá também a colheita das rosas do roseiral que criamos perto da casa de pedra, e juntá-las coloridas ou de uma cor só. Por que só algumas são perfumadas? O ramalhete sobre a grande mesa de madeira, à sombra da parreira esperando por ser transformado, e o desígnio de estar ali com esta doce tarefa pela frente, são processos que quero sempre cultivar para o bem da minha alma e das pessoas ao meu lado.
Makoto Mazuma em sua bela enciclopédia de flores termina seus agradecimentos fazendo sua homenagem que vou endossar aqui:
to all the flowers that are in bloom in this book, and all the withered plants that are not included too, we express our great respect
texto e fotografia Isabel Duprat
Primavera, 2019